terça-feira, 28 de abril de 2020

Os objetivos últimos são realizáveis aqui agora - segunda parte



1 Despertar

Este é o mais comum objetivo de todas as ordens, escolas e religiões. É também muitas vezes colocada como pré-requisito às outras realizações. Mas também é muito confundido com o conceito de iluminação. Vamos desfazer primeiro essas confusões.

Despertar é um objetivo comum principalmente das escolas do extremo oriente. Por isso ser bem menos generalizado nas escolas do ocidente algumas palavras são colocadas para nós como tendo sido trazidas dessas doutrinas. Um grande exemplo é o objetivo supremo da maioria das doutrinas orientais, moksha, traduzido como iluminação. Nada mais absurdo. A palavra moksha seria bem melhor traduzida como despertar-libertação, ou, se não há palavra equivalente, o correto seria traduzir com uma expressão que mostre seu significado, como "libertar-se das ilusões das aparências transitórias", por exemplo, ou "libertar-se da ignorância e das emoções aflitivas", como dizem outros. E isto é melhor descrito como um despertar. Um desperto é chamado buddha, ainda nas tradições do oriente mais distante. Buddha, buda, é a palavra que mais gostam de traduzir erroneamente como iluminado, mas a tradução correta é desperto. Boddhi, outra palavra, significa depertar, não se iluminar. Iluminação é outra coisa, veremos mais adiante. Mas não haveria necessidade de importar palavras de tradições orientais se as escolas ocidentais quisessem ser claras na definição de despertar. Despertar nas tradições ocidentais que de fato se utilizam desse processo pode ser bem definido como ver a verdade, ou a realidade, tal qual ela é em si mesma. A tradição hermética colocou isso num básico princípio, erroneamente apelidado de mentalismo, ele diz "tudo é mente". Mente aqui significa o princípio, nesse caso enuncia basicamente o mesmo que a es

Ainda existem muitas outras palavras orientais mal traduzidas que geram mais confusão. Samadhi, que na verdade significa concentração (e não meditação como muitas vezes é traduzida), é também de certa forma equivalente aos dhyanas (sânscrito) ou jhannas (pali), estados de absorção, ou de concentração; também é sinônima de concentração correta (adhi, significa correto) ou contemplação; e é, não o objetivo a ser alcançado, mas uma etapa a ser galgada para atingi-lo, ou seja, ao estado de buddha. Satori também tem sido traduzido como iluminação e como despertar, e é bem peculiar à sua tradição filosófica, que o traduz como um acordar definitivo, embora literalmente signifique compreensão (que outros traduzem como insight, o que gera mais confusão ainda), porém, neste caso, é uma compreensão completa, esta sim, equivalente a tornar-se um desperto. Já insight seria bem melhor traduzido como compreensão, não é obrigação que todo brasilero saiba o que é insight. Então não encontramos a palavra oriental que realmente tenha dado origem a essa tradução, é apenas um descuido tê-la ligado à palavra pali vipassana, que ficou, por isso, sem tradução para nós, porque vipassana também não é apenas uma compressão, é também concentração, contemplação, um "ato de manter a atenção vilante", ou atenção focada, ou "atenção plena", ou e o resultado disso, uma consciência atenta, ou "consciência plena". E este sim, é o importante no processo do despertar, pois é o estar desperto aqui agora ou "estar consciente aqui agora momento a momento".

É claro que se não soubermos o que se quer dizer com a palavra "despertar" não adianta dizermos que queremos despertar ou escutarmos alguma ordem que diz que seu objetivo é o despertar. É preciso definir precisamente o alvo em se tratando de um objetivo central e último. Se o alvo principal não é bem definido o sistema que o propõe não merece confiança.

Despertar na tradição ocidental (ainda que vinda do oriente mais próximo) também é um conceito muito importante, que tem muito mais a ver com libertação, pois é conhecer a verdade que liberta. Não é qualquer verdade que liberta, há portanto uma verdade que liberta e essa deve ser o alvo, outras verdades ainda que facinantes, podem estar sendo usadas por esses falsos mestres apenas para desviar a atenção da verdade principal, a que liberta. E se esses estão fazendo isso estão de fato mantendo as pessoas prisioneiras.

Nessa tradição ainda temos outra concepção um tanto científica, que é o conceito de estar vigilante momento a momento, que se liga ao conceito de auto-observação, é também  identificado por outros como estado de atenção plena ou de estar presente aqui agora. Pela operação e pelo modus desse processo ainda temos mais um elemento que se liga a ambos os anteriores que é a recordação. Ou seja, na prática, é preciso recordar instante a instante de estar vigilante ( atento e em auto-observação) e presente momento a momento sem esquecer o objetivo, que não é testemunhar qualquer coisa simplesmente, mas manter-se na verdade já recebida, que liberta quando é conhecida, ou através de seu conhecimento. Assim a testemunha, consciência, deve permanecer sempre lúcida, atenta a todos os acontecimentos internos e recordada de sua verdadeira natureza, o Espírito de Deus (caso já o tenha aceito e recebido), que é conhecido na pessoa de Jesus Cristo (por isso "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará", e "eu sou o caminho, a verdade e a vida"). Assim, nessa relação direta, conhecendo a verdade em si, é andar desperto. Reconhecer o Cristo interiormente tem sido muito difícil na maioria das ordens que se dizem cristãs, ou gnósticas ou o que quer que digam que são, porque eles dizem que todos tem uma partícula de Deus ou de Cristo internamente e isto é uma confusão.

O tathagatagarbha ou natureza de buddha que o oriente declara que todos nós possuímos é classicamente um potencial, e só em algumas tradições muito mais recentes é considerada como completamente já presente para ser alcançada já (seja a qualquer momento ou gradualmente . Estas tradições todas, porém, têm em comum que essa natureza precisa ser despertada; dizem que não temos acesso a ela por natureza, mas através de algum procedimento que ensinem. O que muda nas tradições ocidentais é que essa natureza é chamada de espírito e este é que possui a consciência que por sua vez precisa ser despertada também por processos que ensinem.

Mas a partir daí vemos as várias divergências que podemos resumir em três modos: (1) todos possuem o espírito (ou sopro divino ou natureza de Deus ou essência...) igualmente e sua consciência precisa ser desperta através da observância de leis, procedimentos, meditações, moral, bem ao estilo judaico ou hermetista e igualmente nos sistemas orientais como budista, jainista, hiduista ou taoísta; (2) todos possuem o espírito igualmente, mas apenas uma pequena fagulha ou átomo que precisa crescer por algum processo e esse crescimento é que levaria ao despertar da consciência, bem ao estilo gnóstico ou kabalista, onde a fagulha já é considerada o Cristo, e o despertar se dá pelo conhecimento de ou por união com Deus, algo semlhante com outros nomes (ou apontando outras divindades) também se dá nos sistemas brahmanista, krishnaísta e amidista; e (3) todos possuem o espírito (sopro ou essência divina) igualmente adormecido ou mortificado e precisa receber por escolha própria o Cristo e o Espírito de Deus para vivificar esse espírito de uma vez, e o despertar gradual é através da santificação ou obediência e pelo conheciemento direto de Deus, bem ao estilo cristão onde isso ocorre através do conhecimento de Deus na pessoa de Cristo e a entrega completa a ele, na relação vivencial com Deus através do Espírito Santo (esse procedimento é único do cristianismo e do gnosticismo cristão, mas há muita semelhança com o processo krishnaísta e amidista, embora estes apontem outras divindades).

Todos, enquanto ensinamento de um meio para alcançar o propósito, estão de alguma maneira corretos. E todos de certa forma incompletos, e se complementam. A tradição do ocidente vem diretamente das tradições judaica, hermética, platônica e cristã. Essa mescla cultural não se deu de forma sincrética, mas por apontar os mesmos procedimentos ainda que com ligeiras diferenças e linguagens diferentes. Mas falando sobre o processo de despertar como definimos acima, todos concordam com exatidão, embora o expliquem de forma diferente. Todos mostram a necessidade de despertar e despertar é para todos eles o mesmo que conhecer a verdade sem sombra de dúvidas e finalmente por inteiro. Jesus fala do pleno conhecimento da verdade. Isso era o buscado em todas as tradições dos filósofos (dos gregos pré-socráticos, passando pelos metafísicos, e mesmo renascentistas), pelos judeus (em todas as tradições, desde as mais antigas e literalistas ou menos metafísicas, como saduceus do tempo de Jesus, até as mais místicas ou metafísicas como nazarenos, essênios, kabalistas e messiânicos) e pelos herméticos (desde os mais antigos e filosóficos até os mais cientificistas e sistemáticos como os alquimistas e simbolistas dos século XI em diante).

Veja agora a falta de lógica de algumas dessas supostas ordens quando colocam como pré-requisito das outras realizações um despertar gradual. Se o despertar é gradual e você só vai atingir outras realizações depois de despertar, então você não vai ter essas realizações tão cedo, já que o despertar é bem demorado (e é no futuro, eles admitem). E mesmo quando nao é apresentado assim, a pessoa vive numa fé extremamente cega, pois não conhece, não vê, nem sequer vislumbra o objetivo principal que está a perseguir, o despertar, e ainda os falsos mestres geralmente dizem que é impossível descrever. Ora, os seus seguidores estão completamente às cegas, numa confiança enganosa. Como podem tais que se dizem dizem mestres cometer um erro de lógica desses? Como podem uns, supostos mestres, estarem falando de suas realizações superiores se claramente demonstram não serem despertos sequer um pouco mais que o comum da humanidade? Como podem ser mestres e prometerem algo que eles mesmos não sabem dizer o que é nem como é e tais seguodores terem como objetivo aquilo que eles não podem saber o que é? Esses são enganos claros.

Despertar na verdade é sempre presente, é sempre aqui agora, não existe, por definição, despertar futuro, por mais que o despertar seja gradual, ele sempre se dá no agora, de instante a instante, não se restringe a um período de tempo ou um instante. O que ocorre é que agora tem uma magnitude, outro momento pode ter outra. E despertar é e se dá a partir de dois processos basicamente, vigilância e consciência. Para estar desperto é preciso estar atento, presente, dirigindo a atenção voluntária e conscientemente, e é preciso ter pelna consciência. Plenamente atento e plenamente consciente, é como está qualquer desperto, seja o que despertou completamente, seja o que despertou para a realidade ao seu redor aqui agora, é o mesmo processo. A diferença se dá, por isso é gradual, no que é conscientizado (uns tem bem mais conscientizados que outros). Despertar gradual e expansão de consciência, isto é, estar consciente de cada vez mais realidade (em qualidade e quantidade), ou seja, mais camadas de realidade e significado. Não existe plenamente desperto nesse mundo a não ser para a realidade ao alcance dessa condição, pois plenitude de consciência é também plenitude de conhecimento, ou seja, onisciência, e nós passaremos a eternidade conhecendo, só o Eterno pode ser Onisciente, pois é consciente de todos os tempos, de todos os instantes em todos os detalhes de tudo, e desde antes de existir o tempo sempre foi assim, conhece a história real e completa do principio ao fim.

Tudo que nos é possivel é, e sempre será, estar desperto aqui agora, seja qualquer grau de conhecimento e consciência que tenhamos, por maior que possa ser seu alcance. Pois ele se dá num fluxo de instantes presentes que se sucedem. Portanto é possível estar despertos sempre aqui agora. Quando estamos, nesse estado já somos despertos, não vamos despertar, já somos budas, já temos moksha, pois estamos livres das ilusões ainda que estivéssemos  mergulhados nelas, como alguém num sonho lúcido. E sempre será assim em qualquer grau de consciência que atinjamos. Isto realmente é condição para muitas realizações, mas não leva à salvação, à iluminação, à santificação, às bem-aventuranças, se não quisermos, não é um processo automático, nem uma relacão de causa e consequência. É claro que há consequências importantes nesses outros processos que derivam do despertar, mas o despertar não os gera automaticamente, é preciso leva-los a cabo.